sexta-feira, 24 de agosto de 2007

CASCATA DE INCOMPETÊNCIA

Christina Fontenelle

Uma das manchetes do Estadão de hoje é “Anac já sabia em dezembro que avião poderia ''varar'' pista”. Sabia e muito bem. Mas isso não é exatamente o que se possa qualificar como uma grande revelação investigativa, embora somente agora os integrantes da CPI do Apagão na Câmara tenham recebido um documento, datado de 13 de dezembro, que se refere à uma reunião havida, naquela data, entre técnicos da Anac, da Infraero e das companhias aéreas, na qual foi discutido o risco iminente de um avião perder o controle e varar a pista.


Entretanto, embora a gravidade da informação não tenha produzido os efeitos imediatos que deveria, o Brigadeiro Jorge Kersul, chefe do Cenipa, já havia revelado em um de seus depoimentos na CPI da própria Câmara, precisamente no dia 26 de julho, ter estado em reunião com os empombados e prepotentes dirigentes da Anac, em 28 de dezembro de 2006, para tratar da série de incidentes ocorridos com diversos tipos de aeronaves, ao longo daquele ano, na pista principal de Congonhas. Na ocasião, além dos representantes da Anac, estavam também presentes agentes da Infraero e das companhias aéreas. Diante de todos, Kersul profetizou: “Tudo leva a crer que teremos um acidente em Congonhas”. Decidiu-se, então, pela interdição da pista principal, quando chovesse, e pela reforma da mesma.


Durante este depoimento na CPI, o Brigadeiro Kersul, visivelmente emocionado, muito humilde e educadamente incluiu-se no comentário que fez depois dessa revelação (que deveria ter sido bombática, repito): “(Foi) incompetência de todos os envolvidos com a atividade”. É, sem dúvida. Porém, uns foram incompetentes por ganância e por negligenciar, consciente e prepotentemente, o próprio despreparo; já outros por lhes ter faltado uma pitada de coragem e de desprendimento – tão necessários quando o preço que se poderá pagar por esperar a próxima oportunidade seja talvez alto demais.


Voltando à ciência da Anac. Do fim do ano passado para o dia do fatídico acidente com o Airbus da TAM, vôo JJ3054, no dia 17 de julho, o tema “segurança da pista de Congonhas” foi debatido várias vezes e, em todas elas, houve reiterados avisos por parte de especialistas, tanto pilotos civis como técnicos da Aeronáutica, de que uma tragédia poderia acontecer em Congonhas, fosse pelas condições da pista, pelo peso das aeronaves de grande porte que lá pousavam ou ainda pela ausência de uma área de escape adequadamente preparada para uma pista com as características da pista principal daquele aeroporto.


Nos dias 2 e 13 de abril, por exemplo, a Anac promoveu AUDIÊNCIA PÚBLICA SOBRE AS OBRAS NA PISTA PRINCIPAL DO AEROPORTO DE CONGONHAS. Especificamente na reunião do dia 2, e na qual estavam presentes a diretora Denise Abreu e o ex-presidente da Infraero, José Carlos Pereira, o representante do Sindicato Nacional dos Aeronautas, Dr. CARLOS CAMACHO, sugeriu, para a contenção das aeronaves, a implantação, na pista, de concreto poroso. Por sua vez, o representante da Associação Brasileira de Aviação Geral, Dr. ADALBERTO FEBELIANO, reiterou a sugestão de Camacho, dizendo que a obra deveria ser feita com concreto, ainda que este material fosse mais caro que os demais. Na ocasião, o Procurador da República ALEXANDRE GAVRONSKI, da Defesa dos Consumidores, destacou ser importante que as sugestões apresentadas na audiência fossem objeto de consideração pelo órgão convocador da consulta – no caso a Anac. A reunião foi encerrada com o pronunciamento do Superintendente de Infra-Estrutura da própria ANAC, DR. MIYADA, destacando “a proposta do DR. CAMACHO a respeito do concreto poroso”, salientando que “não se excluiria a possibilidade de adoção desse concreto de resistência controlada para retenção de saídas de pistas em caso de overrun” (saída de pista).


Entretanto, na hora da reforma, as preocupações giraram em torno do tempo que levaria a obra, pois deveria ser rápida, para não acarretar prejuízos às companhias aéreas. Preocupação com as recomendações feitas sobre as adequações que deveriam ser feitas para área de escape? Precisa comentar? Resultado: a pista principal de Congonhas, além da ausência de área de escape adequada, acabou ficando mais escorregadia do que estava antes da reforma. Por que? Entre outras coisas, porque, segundo teria relatado ao presidente Lula o ex-presidente da Infraero, “sairia mais caro”. Quanta preocupação com o dinheiro do contribuinte! Aliás, teria sido esta mesma preocupação que, segundo as palavras da diretora da Anac, Denise Abreu, na CPI da Câmara, teria levado os funcionários daquela agência a fazer várias viagens com as despesas pagas pelas companhias aéreas – as mesmas que a Anac deveria fiscalizar.

Naturalmente que, com tanta preocupação em economizar, acaba sobrando dinheiro para ser empregado em outras áreas. No caso da Infraero, por exemplo, os salários dos dirigentes aumentaram em 50%, desde 2001. É muito? Tem gente que acha que não. Por isso, o adicional de férias que, por lei, é de 33% do salário, para quase todos os trabalhadores contratados do país, na Infraero é de 50%. Teria sobrado dinheiro, também, para que a empresa se desse ao luxo de pagar R$ 1,4 milhão acima do valor de mercado em pontes para embarque de passageiros justamente no na reforma do aeroporto de Congonhas. A suspeita é do TCU.

Os diretores da Anac também economizam muito, como já aludimos acima, viajando para cá e para lá, à custa de passagens cedidas pelas companhias aéreas. Se a gente sofresse de inocência crônica aguda, poderia até acreditar que se tratasse de mais um daqueles comportamentos antiéticos que tanto já vimos ocorrer entre o público e o privado. Acontece que nós sabemos muito bem que, nesse caso, está tudo em família e o dinheiro vem todo, no final das contas, do mesmo lugar. Por isso tamanha a naturalidade com que os diretores da Anac falam sobre esse tema – pelos quatro cantos, de seja qual for o lugar em que se encontrem, e com ares de cheios de razão.


Além destas 4 reuniões acima citadas, a Anac empenhou-se, POR DUAS VEZES, em defender a viabilidade e a segurança da pista principal de Congonhas perante a Justiça, como bem se pode observar no esquema elaborado pelo jornal Estado de São Paulo):


24 de janeiro: Procuradores federais em São Paulo ingressam com ação em que pedem a interdição da pista de Congonhas. No mesmo dia, a Anac edita portaria para procedimentos com pista molhada. Nela, determina a suspensão das operações quando o nível de água estiver acima de 3 mm.

31 de janeiro: A Anac encaminha documentos técnicos à Justiça e sustenta que a pista tem condições de uso. No mesmo dia, a agência divulga em seu site a Instrução Suplementar que fixa normas para operação em pista molhada. É o documento que, mais tarde, a diretora Denise Abreu classificou como ''estudo interno''.

5 de fevereiro: O juiz Ronald de Carvalho Filho proíbe o pouso na pista principal de Congonhas dos aviões Fokker 100 e Boeings.

22 de fevereiro: A Anac encaminha ao Tribunal Regional Federal (TRF) recurso contra a restrição. Entre os documentos anexados está a norma ''extra-oficial''. Denise e técnicos da agência entregam o recurso à desembargadora Cecília Marcondes. No mesmo dia, o tribunal libera as operações.

Denise Abreu havia levado à desembargadora, entre outros documentos, uma norma que proibia o pouso de aviões de grande porte com reverso inoperante em pistas molhadas. Esta seria a garantia de que as operações seriam seguras, apesar da falta do grooving na pista principal de Congonhas e ainda levando-se em consideração uma outra norma, que estabelecia regras para lâmina d’água. Portanto, a decisão da desembargadora de liberar a pista para pousos e decolagens foi dada com base nesses documentos recebidos da Anac.

Porém, ao ser questionada sobre o fato e sobre o próprio documento em si, na CPI do Apagão da Câmara, Denise disse que o papel não tinha validade de norma, que se tratava de um documento de estudos internos da Anac e que o mesmo havia ido parar no site da agência, possivelmente, por causa de uma “falha” na área de informática. Quanto ao fato de o tal documento também ter ido parar entre os papéis entregues pela própria Denise à desembargadora Cecília Marcondes, a diretora da Anac disse que entregara muitos documentos e que não discutira especificamente sobre esse assunto com a magistrada.

Por causa disso, na última terça-feira, a procuradora da República Fernanda Taubemblat afirmou que iria pedir a abertura de duas ações para investigar a utilização - pela Anac - de documento sem validade legal na guerra judicial para reabertura do Aeroporto de Congonhas. Uma investigará crime de falsidade ideológica e será dirigida à área criminal do Ministério Público Federal. A outra será de improbidade administrativa, para apurar se houve desleixo por parte dos responsáveis pelo recurso da Anac. Também na terça, a CPI do Apagão da Câmara aprovou o pedido de quebra de sigilo bancário, telefônico e fiscal da diretora da agência, Denise Abreu, e de outros ex-diretores da Anac e da Infraero.

Mas, há autoridades que são co-responsáveis pela incompetência generalizada da Anac e que estão sendo convenientemente deixadas de lado, tanto pelas CPIs como pela imprensa de maneira geral. Senão, vejamos.

Em dezembro de 2005, o presimente Luiz Inácio Lula da Silva indicou QUATRO dos cinco diretores que iriam compor a então nova Agência Nacional de Aviação Civil. Em flagrante desrespeito à própria Lei que criava a Anac (lei nº 11.182), cujo artigo 12, especifica que, entre outras prerrogativas profissionais, os diretores da agência devem ter “elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeados”, Lula escolheu:

1) Para a chefia da agência, por indicação do ministro Walfrido Mares Guia, o engenheiro Milton Zuanazzi, então secretário de políticas de turismo do Ministério do Turismo. Na ocasião, 15 entidades e empresas do setor enviaram carta a Lula em apoio a Zuanazzi. Ele já havia sido presidente da Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT) e era filiado ao PT (continua sendo) – além de ter a simpatia da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, de quem já teria sido colaborador.

2) Para a diretoria colegiada da Anac, o ex-deputado federal e, na época, assessor da Infraero, Leur Lomanto (PMDB-BA), indicado pela bancada de seu partido (inclusive pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, que, até então, não sangrava) e apoiado pelo então presidente da Infraero, Carlos Wilson, que mantinha excelente relacionamento com Lula. Lomanto foi um dos relatores, na Câmara, do projeto de lei que criava a Anac, durante o governo FHC.

3) Também para a diretoria da nova agência, a advogada paulista Denise Ayres Abreu, que trabalhara na Casa Civil com o ex-ministro José Dirceu, a quem era e ainda seria ligada. Denise, inclusive, tem um irmão que também é advogado e tem como cliente a TAM.Ela também chegara a ser indicada para uma das vagas abertas no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), ainda com Dirceu na Casa Civil, mas a tentativa de colocá-la no Cade foi abortada pelos próprios parlamentares petistas, que constataram o risco de que ela fosse rejeitada pela Comissão de Infra-Estrutura, por causa de sua proximidade com o hoje ex-deputado.

4) Ainda para compor o quadro da diretoria da Anac, alguns dias depois da nomeação dos outros 3 diretores, foi a vez de Josef Barat, um economista que colaborara com Zuanazzi em estudos para recompor a malha aérea do Brasil, com vistas a incentivar o turismo, antes de ele vir a se tornar chefe da Anac. É que ele comandava uma empresa que prestava serviços de consultoria às companhias aéreas.

5) Por fim, os militares não conseguiram colocar na diretoria da Anac o seu candidato, que era o brigadeiro Jorge Godinho, que chefiava o extinto Departamento de Aviação Civil (DAC), órgão que a nova agência substituiria. Dessa forma, eles ficaram sendo representados na diretoria pelo coronel-aviador Jorge Luiz Brito Velozo, que era, então, chefe do subdepartamento técnico-operacional do DAC - responsável pela manutenção e pela fiscalização de aeronaves.

Feitas as indicações, os “candidatos” tiveram que passar pela Comissão de Infra-Estrutura (CI) do Senado, onde deveriam ter sido sabatinados. Sendo assim, no dia 15 de dezembro, após três horas de reunião, aquela Comissão aprovou quatro dos nomes indicados para a diretoria da Anac. Durante o processo de votação, senadores discutiram questões ligadas à área de atuação da Anac (veja quadro ao lado, baseado em imagens e informações veiculadas pelo Blog do Fernando Rodrigues).

Perseguição ou não, o coronel Jorge Luiz Brito Velozo foi o único candidato ao qual os senadores fizeram perguntas. O presidente da comissão, senador Heráclito Fortes (PFL-PI), questionou Jorge Velozo a respeito da segurança dos vôos no Brasil. Velozo, então, afirmou que o Brasil seguia todas as normas internacionais de segurança na aviação e que essa era a razão epla qual o país apresentava, à época, um dos menores índices de acidentes aéreos do mundo. O senador Delcídio Amaral (PT-MS), por sua vez, quis saber sobre a situação da Varig. Velozo informou que a empresa possuia uma das maiores estruturas para treinamento e para manutenção no setor de aviação no Brasil.

Prestanto mais um dos tantos desfavores que tantas mulheres parecem fazer questão prestar aos sacrifícios de também tantas outras que vem dignificando a presença feminina no mercado de trabalho e na composição histórica de nosso país, a senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) lembrou, à ocasião da indicação e da aprovação de Denise Abreu, que esta seria a primeira mulher a ocupar um cargo de direção na área de aviação civil no Brasil e lembrou que as mulheres teriam pouca representatividade na administração pública.

A depender da atuação de algumas destas representantes do sexo feminino, incluindo a da senhora Denise Abreu, nós mulheres estaremos condenadas ao definitivo afastamento da área em questão. Tomara que consigamos sobreviver a esse duro golpe.

Bem se vê que eu não nutro admiração pela senhora Denise Abreu e muito menos pelos seus colegas da Anac. Entretanto, temos que ser justos em admitir que a responsabilidade que lhes caiba sobre o caos aéreo, e mais especificamente sobre o acidente com o Airbus da TAM que causou a morte de 199 pessoas, é a mesma que caberia aos responsáveis pelas suas indicações e posteriores aprovações para os cargos que vieram a ocupar na agência reguladora inaugurada no mandato do exelentíssimo senhor presimente da república Luiz Inácio Lula da Silva.

Finalmente, não resistindo às pressões para que deixasse o cargo de diretora da Anac, provocadas, diga-se de passagem, em grande parte, pela sua própria falta de carisma, pela falta de “tato” ao lidar com o público e pelos seus óbvios erros profissionais na direção da agência, Denise Abreu encaminhou, hoje, sua carta de renúncia. Ela é o mais recente “boi de piranha” atirado ao gigantesco lago da obscuridade petista. A fila anda... Em breve teremos outro, e depois mais outro, e mais outro, até que seja impossível não reputar aos que insistam em não enxergar o óbvio a indubitável e indisfarçável pecha de cúmplice.

Christina Fontenelle
E-MAIL: Chrisfontell@gmail.com
ASSISTAM AO VIDEO DO JORNAL DA GLOBO SOBRE A RENÚNCIA DE DENISE ABREU



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