quarta-feira, 25 de julho de 2007

"O caos aéreo é responsabilidade do governo federal e não é de hoje. Essa situação de defasagem vem acontecendo há, pelo menos, 10 anos."

ANDRÉ AUGUSTO CASTRO
Editor da UnB Agência
Daiane Souza/UnB Agência

Aos 71 anos, o Brigadeiro Reformado da Aeronáutica Adyr da Silva já viu e viveu muito a aviação brasileira, tanto civil como militar. Foi piloto da Força Aérea Brasileira (FAB) por mais de 10 anos e comercial por outros 15. Atualmente professor do Centro de Formação de Recursos Humanos em Transportes (Ceftru) da Universidade de Brasília (UnB), vê com perplexidade o caos aéreo que o país vive e afirma que a responsabilidade pela situação é mesmo do governo federal, mas que isso não é uma situação nova: "Essa defasagem vem acontecendo há pelo menos 10 anos. E é responsabilidade do governo porque o setor é totalmente controlado e regulamentado. Tanto a parte operacional como a de infra-estrutura aeroportuária e aeronáutica".

Sobre o acidente com o vôo JJ 3054 da TAM, na noite de terça-feira, 17 de julho, ele afirma que qualquer diagnóstico é precipitado e que somente com os dados da caixa-preta e do gravador de voz é que será possível saber exatamente o que aconteceu. "O foco da questão é descobrir porque o piloto resolveu arremeter e porque o fez tão tarde", aponta o professor. No entanto, ele isenta a pista do aeroporto de Congonhas (São Paulo), um dos mais movimentados do país, de culpa e afirma que o grooving - ranhuras que facilitam o escoamento de água e aumentam o atrito dos pneus ao tocar o solo - é um auxiliar, mas não fundamental. "Uma pista operacional não leva em conta a existência ou não do grooving, ele é um implemento, que tem participação pequena na parada da aeronave", reforça.

SELVAGERIA - Com experiência nacional e internacional em aviação, Silva afirma que os acidentes e incidentes têm impacto significativo na imagem internacional do país, considerado uma das 10 maiores potências aeronáuticas do mundo pelo movimento no transporte aéreo, pelo número de aeronaves, aeroportos, pelo sistema integral de controle do tráfego, pela indústria aeronáutica e o grande número de aeronavegantes. Somado a esse fator, o prestígio brasileiro também cai pela defasagem tecnológica decorrente do crescimento do setor, que chega a 15% ao ano, e da falta de investimentos para acompanhar essa progressão: "O número de equipamentos, radares, consoles deveria ter aumentado proporcionalmente".

Mas essa defasagem tecnológica tem um viés ainda pior, já que o Brasil nem começou a usar comunicação por satélite na aviação e está atrasado no compromisso de implantar, até 2010, o sistema CNS-ATM, que visa ao uso de satélites para navegação, comunicações e vigilância. "Isso é mais um fator de desgaste internacional porque o país precisará pedir prorrogação de prazos nos organismos internacionais". Enquanto tudo isso acontece nos bastidores, Silva afirma que aos passageiros cabe mesmo a indignação, mas com civilidade. "O passageiro não tem de ser nada tolerante, mas não adianta, como assisti no Galeão, agredir funcionários de companhias aéreas. Isso é selvageria".

"O tráfego que não é originário nem destinado finalmente a São Paulo deveria ser levado para o Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília..."


UnB AGÊNCIA - Desde o acidente com o avião da GOL, em setembro de 2006, o Brasil se pergunta se ainda é seguro usar o transporte aéreo no país e o recente desastre com o avião da TAM acirra essa perspectiva. Ainda é mais seguro viajar de avião no Brasil?


ADYR DA SILVA - Muito mais, incomparavelmente. Mas isso não pode ser tomado como uma colocação muito positiva, porque os outros transportes é que estão piores. Diria que ainda é um bom transporte, seguro, o melhor que temos no país. Todos os mandamentos de segurança, inclusive internacionais, são respeitados. Obviamente, existem situações, pelas condições tecnológicas e técnicas de operação de transporte aéreo que funcionam no limiar dessas regras. Era seguro pousar em Congonhas naquela hora, com chuva, à noite e com pista escorregadia? Sim, se o piloto for cuidadoso.

UnB AGÊNCIA - O acidente foi provocado pela pista de Congonhas ou houve falha humana?


SILVA - Qualquer diagnóstico é precipitado. Somente com os dados da caixa-preta e do gravador de voz é que poderemos matar a charada. Essa é uma questão complexa. A mídia está colocando muita ênfase no grooving (ranhuras na pista para facilitar o escoamento de água e aumentar o atrito com os pneus do avião). Mas ele não é milagroso, apenas melhora. Uma pista operacional não leva em conta a existência ou não do grooving, ele é um implemento, um auxiliar que tem participação pequena na parada da aeronave. As pistas são consideradas disponíveis em relação à resistência do pavimento, acabamento, comprimento e não ao grooving. O foco da questão é descobrir por que o piloto resolveu arremeter e por que o fez tão tarde.

UnB AGÊNCIA - O acidente com o avião da TAM pode ter sido provocado pelo tamanho da aeronave, um Airbus A 320?


SILVA - Muito pelo contrário. A tendência é usar aviões cada vez maiores. Diminuir o tamanho dos aviões não resolve o volume monumental da demanda por vôos. Os aviões modernos são maiores e exigem menos pista para pousar. Proporcionalmente ao comprimento de pista e ao número de passageiros, o A 320 é um dos menos exigentes de todos, um campeão de pouca pista, por assim dizer.

UnB AGÊNCIA - O aeroporto de Congonhas é mal projetado?


SILVA - De forma alguma. O problema número um de Congonhas é o crescimento urbano ao seu redor e o segundo é que se cuida muito do terminal, mas pouco das pistas e da tecnologia de automação aeroportuária.

UnB AGÊNCIA - Pode-se dizer que, se fosse em outro aeroporto, esse acidente não teria ocorrido?


SILVA - Claro! Se fosse no Galeão, por exemplo, não teria ocorrido. Em Brasília, possivelmente, também não. Há uma ressalva. A pista de Congonhas não é pequena, mas o toque do avião no solo deve ser preciso, como também exige o Aeroporto Santos Dumont (RJ).

UnB AGÊNCIA - Por que o aeroporto de Congonhas é sobrecarregado?


SILVA - Porque as empresas encontram lá as facilidades de concentração que fazem baixar seus custos, inclusive os das passagens para os usuários. Quando a empresa concentra vôos e conexões em um local, ela leva vantagem, assim como os passageiros.

UnB AGÊNCIA - Levantamentos mostram que houve, em Congonhas, mais de oito casos de derrapagens ou problemas similares em pousos de aeronaves nos últimos dois anos. O senhor considera o acidente com o avião da TAM uma tragédia anunciada?


SILVA - Se o pouso acontecer da maneira devida, há um tipo de risco. Se conjugarmos fatores adversos uns com outros, as condições de risco aumentam: pouso noturno, com chuva, pista escorregadia... Isso tudo aumenta a probabilidade de um sinistro acontecer. Nenhum acidente aeronáutico tem uma única causa. São múltiplos fatores: homem versus máquina versus infra-estrutura versus gerenciamento versus treinamento e por aí vai.

UnB AGÊNCIA - Congonhas, pelo fato de ser o aeroporto mais movimentado do país, tem provocado a sensação de que aeroportos no meio de grandes cidades não são adequados. Isso é verdade?


SILVA - O problema é que todo aeroporto tem um limite de capacidade, que deve ser respeitado. O fato de ser no centro da cidade é um convite à pressão para desrespeitar os princípios de segurança aeroportuária: várias construções são feitas onde não se deve e têm alturas que ultrapassam a rampa de segurança. Todo aeroporto precisa ser respeitado. Deve haver um entendimento entre a gestão urbana e o uso do solo ao redor do aeroporto e o próprio aeroporto. Que eu conheça, foram feitas oito tentativas de ajustar os planos urbanísticos de São Paulo ao aeroporto de Congonhas. A prefeitura sempre rechaçou todas, por mais de 30 anos. Um crescimento desordenado daquela maneira dificulta tudo. Além da cabeceira da pista, tem o que chamamos de área de segurança de fim de pista, que, no caso de Congonhas, deveria ter 60 metros . Onde eles estão? Na avenida.

"O governo federal não é lento para tomar decisões, é lentíssimo! E às vezes até um pouco insensível. Os problemas da aviação civil não nasceram ontem ou no ano passado... estão se acumulando há quase uma década."

UnB AGÊNCIA - O aeroporto de Congonhas é desprotegido?


SILVA - Quem já pousou em Congonhas sabe bem a distância que se passa das casas. Se estiver na janela, fica-se atemorizado. E se o pouso for entre nuvens, o que é comum? O que existe de erro em Congonhas está lá há cerca de 40 ou 50 anos. É a ausência de proteção em volta do aeroporto. Ele pode ser central e bem protegido: em Porto Alegre , é assim, no Santos Dumont (RJ) também. Há necessidade de proteção urbana para o aeroporto. Em São Paulo , o esforço eleitoral tem impedido uma das situações mais importantes: uma área de segurança em cada cabeceira, que seria fundamental. Isso não existe em Congonhas. O perigo é o que todos testemunhamos: a aeronave não tem uma área de parada em caso de emergência. Ainda que seja pequeno, um espaço de 60 metros ajuda bastante.

UnB AGÊNCIA - Congonhas deveria ser desativado?


SILVA - Não, por duas razões elementares: é impossível e ele é fundamental para a malha área nacional. Mas é preciso administrar bem. Vou dizer uma coisa ousada: se fosse possível, todas as partes superiores dos prédios ao redor de Congonhas que oferecem obstáculo à segurança do vôo deveriam ser desapropriadas e sumariamente demolidas, reduzindo sua altura na rampa de procedimento de pouso e decolagem. No entanto, consertar o que está feito é difícil, mas é imprescindível usar Congonhas. De imediato, o tráfego que não é originário nem destinado finalmente a São Paulo deveria ser levado para o Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília... Há diversas opções. Há uma estimativa que entre 50% e 60% do tráfego de Congonhas tenha como origem e destino a capital paulista. Os outros 40% deveriam ser liberados para outros aeroportos.

UnB AGÊNCIA - O que diz a legislação sobre construção de aeroportos em áreas urbanas?


SILVA - As normas são internacionais e adotadas no Brasil. Existe o chamado Plano de Zona de Proteção, que determina a área de segurança de pista e em volta dela que não pode ter nenhum obstáculo, nada construído e ainda que as rampas de proteção sejam bem definidas. Existe uma figura geométrica que corresponde ao espaço que os aviões usam para a aproximação e o pouso. Em Congonhas, isso é desrespeitado. Quando se agride esse plano, os obstáculos são assinalados e é criado um planejamento específico de zona de proteção no qual os parâmetros são mais apertados. O que existe em Congonhas é uma adaptação, porque não houve respeito ao uso do solo para preservar o aeroporto. Faltou legislação para protegê-lo. Em Brasília, por exemplo, o aeroporto é totalmente protegido e ninguém sequer pensa em construir um prédio na cabeceira da pista.

UnB AGÊNCIA - É possível separar as esferas política, operacional e técnica para resolver o problema da aviação civil?


SILVA - Não só é possível como isso deve ser feito. Na maioria dos países desenvolvidos, a aviação civil é administrada por especialistas do setor. Eles têm treinamento, experiência, capacitação de habilitação para lidar com aspectos complexos e peculiares da aviação. Quando começamos a politizar, começamos também a enfraquecer. É inevitável que chefias e direções acabem sendo objeto de indicação política, o que é lastimável porque um indivíduo senta-se numa cadeira para comandar um assunto complexo e é incapaz de dirigir uma reunião. Fica na expectativa do que dirão a ele. Isso é danoso porque a aviação é extremamente dinâmica não só em crescimento de mercado como em evolução tecnológica permanente. A aviação depende da tecnologia da informação, da evolução de mecanismos e aparelhos de vôo, da eletrônica de bordo... é um ambiente altamente tecnológico e nem sempre o indicado é desse ambiente, como poderia e deveria ser. É possível juntar política e especialização. Mas o que vemos são pessoas sem treinamento algum sendo colocadas em postos de direção. O resultado dessa situação contribui muito para a lacuna tecnológica que o país tem.

UnB AGÊNCIA - Existe defasagem tecnológica?


SILVA - Sim. Nem começamos a usar comunicação por satélite, muito usada inclusive no transporte terrestre. No transporte marítimo, nem se fala: há satélites que cobrem a Terra inteira. Mas a Aeronáutica não usa. O sistema GPS que conhecemos já está velho. O sistema Galileu (o GPS europeu) funcionará em dois anos e o GPS 2 também. Os satélites estão aí. Não estamos nem perto de usá-los. Estamos super atrasados na implantação do sistema CNS-ATM, que é a utilização de satélites para navegação, comunicações e vigilância. Isso deveria ser feito até 2010. Isso é mais um fator de desgaste porque o país precisará pedir prorrogação de prazos nos organismos internacionais. É mais um componente da defasagem tecnológica.

UnB AGÊNCIA - Faltam investimentos no setor?


SILVA - Falta muito investimento, especialmente, direcionado para tecnologia. Precisamos entrar a fundo no desenvolvimento de sistemas, hardware, software, comprar equipamentos novos. Os aeroportos brasileiros têm um nível baixíssimo de automação. Isso significa informatizar com softwares adequados todos os sistemas aeroportuários. Desde o sistema de hora certa (sincronia de relógios em todo o aeroporto) até o controle de serviços essenciais, como energia elétrica, contra incêndio, uso de água, comunicações, iluminação. A tecnologia tem de estar presente até na arquitetura, aproveitando condições favoráveis de cada local. Não investimos nisso.

UnB AGÊNCIA - Quem é o responsável pelo caos aéreo que o Brasil vive hoje?


SILVA - O caos aéreo é responsabilidade do governo federal e não é de hoje. Essa situação de defasagem vem acontecendo há, pelo menos, 10 anos. E é do governo porque o setor é totalmente controlado e regulamentado. Tanto a parte operacional como a de infra-estrutura aeroportuária e aeronáutica. As iniciativas e políticas setoriais são governamentais. Não faltam estudos sobre o que pode e deve ser feito, evolução do tráfego, do mercado, condições de operação. O que precisamos é agir mais rápido.

"Que eu conheça, foram feitas oito tentativas de ajustar os planos urbanísticos de São Paulo ao aeroporto de Congonhas. A prefeitura rechaçou todas."

UnB AGÊNCIA - O governo é lento para tomar decisões?


SILVA - É lentíssimo! Às vezes, até um pouco insensível. Os problemas da aviação civil não nasceram ontem ou no ano passado. Estão se acumulando há quase uma década. Vivemos uma defasagem tecnológica, temos dificuldade de treinamento e há falta de investimentos. Os recursos até existem, mas não são colocados em áreas prioritárias. Todo aeroporto moderno e movimentado tem, em cada cabeceira da pista, uma área de segurança que deveria ter 240 metros por recomendação internacional. É um anexo da Convenção de Chicago da Organização da Aviação Civil Internacional, que cuida só de aeroportos. Congonhas não tem essa capacidade. Por que não se pode construir esse espaço em cada cabeceira? Por que não podemos cruzar as avenidas? O aeroporto Charles De Gaulle, na França, deve ter uns oito aerodutos, nos quais a estrada passa por baixo e o avião por cima. O Galeão, no Rio de Janeiro, tem dois. Por que não se faz isso em São Paulo? Isso é tecnologia recente, custa caro. Cairia como uma luva para Congonhas, mas preferimos gastar milhões para reformar o terminal de passageiros e construir estacionamentos (investimentos necessários, é claro), mas seria muito mais importante fazer essa extensão, chamada de Resa (Área de Segurança de Fim de Pista, em inglês).

UnB AGÊNCIA - Que saídas poderiam ser adotadas para agilizar as decisões?


SILVA - A aviação civil precisa ser reorganizada. Temos muita gente cuidando da aviação civil no Brasil e há necessidade de uma centralização estratégica, doutrinária, de aplicação de princípios, coordenação de objetivos. Quantas entidades cuidam da aviação civil? A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o Ministério da Defesa, a Infraero, a Aeronáutica e o Conselho Nacional de Aviação Civil (Conac). Esses órgãos precisam de coordenação. O poder público deve harmonizar essa atuação, especialmente, para a atualização tecnológica, hoje deficiente.

UnB AGÊNCIA - Que fatores contribuem para esses problemas?


SILVA - Há uma série de fatores que são antidesenvolvimentistas para a aviação, como os ambientes político e administrativo. Falta treinamento na área da aviação, e muita gente que pensa ser bem treinada precisa, na verdade, aprender tudo, tanto para o gerenciamento, como para a execução, a pesquisa, o assessoramento. O dinamismo do setor reforça a necessidade de aprendizado contínuo.

UnB AGÊNCIA - Os passageiros precisam ter tolerância com o caos aéreo?


SILVA - O passageiro não ter de ser nada tolerante. Muito pelo contrário. Quanto maior a indignação com essa situação maior será a ação para melhorar o serviço. O passageiro precisa ser civilizado. Não adianta, como assisti no Galeão, agredir funcionários de companhias aéreas. Isso é selvageria. O passageiro precisa pressionar por seus direitos e ajudar o poder público a elaborar regras mais precisas, explícitas e cuidadosas. Nesse acidente da TAM, a lista de passageiros saiu no dia seguinte. No da GOL, há 10 meses, levou vários dias. Já melhorou, mas ainda não se avançou muito. A aviação está se habituando a não ser mais uma caixa-preta, mas isso é um processo educativo para todos os envolvidos, desde os passageiros até as empresas e os órgãos de regulação. As empresas, por exemplo, já não são mais pegas de surpresa em caso de sinistro, já têm procedimentos estabelecidos.

UnB AGÊNCIA - A iniciativa privada deve participar do setor aéreo?


SILVA - A Infraero deve cuidar dos aeroportos e descentralizar o tamanho de sua administração. Não se pode concentrar toda a gestão aeroportuária nas mãos da Infraero. É preciso incluir a iniciativa privada nesse processo. O transporte aéreo é um setor da infra-estrutura, um monopólio do Estado que é concedido. Tem-se de encontrar concessionários competentes, assim como é preciso aumentar a competência dos gestores do sistema.


"O passageiro não tem de ser nada tolerante. Muito pelo contrário. Quanto maior a indignação com essa situação maior será a ação para melhorar o serviço."


UnB AGÊNCIA - O crescimento da demanda por vôos pode ser um dos fatores responsáveis pelo apagão aéreo?


SILVA - A situação aérea no país deve ser observada por dois aspectos. Um deles é a democratização do transporte aéreo que, durante 50 anos, se desenvolveu sendo usado apenas pela elite. A população cresce na faixa de 1,5% ao ano, e o transporte aéreo na taxa de 15% ao ano. A quantidade de pessoas que, pelo menos uma vez usaram avião no ano, saiu de 8% para 10% dos brasileiros. O segundo item é a capacidade do país de acompanhar esse crescimento com a oferta de infra-estrutura. Isso corresponde à parte aeronáutica (tráfego aéreo), aeroportos (terminais de passageiros e cargas), pistas, sistemas de comunicação. Se a infra-estrutura não acompanhar a demanda, ficaremos em situação difícil, como estamos.

UnB AGÊNCIA - Que outros fatores contribuem para os problemas que vemos hoje?


SILVA - A falta de automação aeroportuária, que reflete diretamente sobre o conforto, atitude psicológica do passageiro e coordenação entre os diversos órgãos que atuam nos aeroportos. Todo aeroporto tem um Sistema de Informação de Vôo, mas não temos software, aquisição de dados, uniformização de dados e nem condições de colocar o usuário atualizado com o que está acontecendo. Por usuário, entende-se passageiro, companhia aérea etc. Ainda estamos na idade da pedra lascada em relação a esses sistemas. Não sabemos nada. Isso irrita o passageiro, causa revolta e desconforto.

UnB AGÊNCIA - Dado o crescimento na demanda, a infra-estrutura da aviação civil é precária?


SILVA - Sim, a estrutura é muito precária. Não houve acompanhamento em termos de investimentos, efetivos, treinamento, aplicação tecnológica com o mesmo ritmo de crescimento da demanda pelo transporte aéreo, de passageiros e cargas.

UnB AGÊNCIA - Que problemas isso provoca?


SILVA - Há escassez de pessoal treinado, o gerenciamento é difícil, os equipamentos são obsoletos, as tripulações são mal doutrinadas pelas empresas.

UnB AGÊNCIA - O espaço aéreo brasileiro era considerado seguro até que problemas começaram a se multiplicar desde o acidente aéreo da GOL, 10 meses atrás. Saímos de uma relativa paz nos céus para uma situação de caos, de apagão. Esses problemas não estão latentes há muito tempo?


SILVA - A crise é anunciada e evolutiva. Está completando quase 10 anos de idade. Aí chega um dia em que os sintomas encobertos viram uma doença grave. É como uma dor de cabeça, que a gente enrola, toma analgésico... até que chega um dia em que estoura e você descobre que tinha uma doença e não sabia. Não sabia porque não quis: o diagnóstico está aí! O que acontece é que estávamos vencendo certas dificuldades com o jeitinho brasileiro: isso é um processo educacional errôneo. Quando damos o jeitinho, fugimos às regras e fazemos coisas que não estão absolutamente certas. Estamos no limite, em todos os sentidos e caminhando para um estado de deterioração não só visível como angustiante.

UnB AGÊNCIA - Muito se culpou os controladores de vôo após o acidente com o avião da GOL. Eles têm culpa realmente?


SILVA - Há cinco anos, tem havido um processo de criminalização de sinistros no transporte aéreo. Foi um movimento internacional no qual se começou a processar controladores e empresas por acidentes aéreos. Havia no Brasil um movimento para reagir a essa tendência, só que a primeira coisa que vimos depois do acidente foi a suspensão do pessoal em serviço, abertura de inquérito policial e virou um ambiente de crime, penal. E ainda houve pressão sobre os controladores. O que eles fizeram? Passaram a agir segundo as normas mandam, reduzindo o número de vôos controlados simultaneamente. Eles estavam fazendo das tripas coração para manter o nível dos serviços. Os controladores são sobrecarregados, o quadro é pequeno, o tráfego de passageiros cresce 15% ao ano e não houve expansão correspondente no sistema de controle. O número de equipamentos, radares e consoles deveria ter aumentado proporcionalmente. Quando visitamos as salas de controle, percebemos melhorias anuais, mas isso não acompanha o crescimento do transporte aéreo. Assim como o número de controladores, que não tem aumentado.

UnB AGÊNCIA - O que o senhor pensa sobre a desmilitarização? É viável?


SILVA - Os militares insistem em manter o controle de tráfego aéreo sob o argumento de que um bando de incompetentes tomará conta. Nada disso tem de ser militar. O tráfego aéreo nacional é mais de 99% civil. É possível desmilitarizar e continuar a ter, dentro do controle aéreo, um escritório militar responsável. Mas isso é um tabu hoje em dia. Os caminhos apontam para a desmilitarização, inclusive pelos benefícios que os controladores civis têm em relação aos militares. Recebem vale-transporte, alimentação, plano de saúde, distribuição de lucros, entre outros... coisas que os militares não têm.

UnB AGÊNCIA - Como isso pode ser feito de forma eficiente?


SILVA - Com a criação de um órgão especial. A maneira mais prática e indolor é transferir progressivamente o controle à Infraero, que já tem uma Superintendência de Navegação Aérea com um quadro de controladores. Depois, passar torres de controle, sistemas de apoio, meteorologia, salas de informação de vôo. Nas bases aéreas, ficariam apenas os sistemas militares. Isso é possível, mas não é feito por uma série de razões. A Aeronáutica não quer liberar, porque acha que a defesa aérea ficaria enfraquecida, por uma questão de poder e prestígio.

UnB AGÊNCIA - Que impacto essa sensação de insegurança tem na imagem internacional do país?


SILVA - O impacto é direto e imediato. Essa amplificação de pequenos ou grandes acontecimentos projeta uma imagem doméstica de perigo e risco de andar de avião. Isso é automaticamente transferido para a mídia internacional, contaminando o prestígio e a consideração do Brasil, provocando uma erosão na imagem do país, que sempre foi considerado uma potência aeronáutica. No contexto internacional, o Brasil é considerado um dos 10 maiores países em termos de aviação civil e transporte aéreo. À medida que esses episódios danificam a imagem do país, perde-se o prestígio e pode acontecer uma situação de depreciação. No entanto, não há risco de perder rotas porque os aeroportos internacionais do país são de extrema qualidade. São bem dotados em termos de pista, apoio ao passageiro, tráfego aéreo, como são Guarulhos, Galeão e aeroportos do Nordeste equipados para o tráfego internacional.

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