segunda-feira, 30 de julho de 2007

IDENTIFIQUE A NOSSA DOR

Por: Fabrício Carpinejar
Poeta de Caxias do Sul (RS)


Não pode identificar os nossos mortos, identifique a nossa dor. Só isso que peço. Identifique a nossa dor antes que ela se transforme em pavor, em pânico, em doença. Nossa dor é o que há de mais fiel ao corpo do passageiro.
Escute a ansiedade cardíaca de nossa dor: ela vive uma morte que é o jeito que encontramos de continuar vivendo. Não é uma aliança, implante de platina ou um objeto que nos dirá que é ele. É a nossa dor. A nossa dor carbonizada. A nossa dor destroçada. A nossa dor atropelada. A nossa dor que não tem um rosto do filho, do pai, da mãe, do irmão, da mulher, do marido, do amigo para se despedir. Talvez não entenda a importância de passar os dedos no nariz do morto, nas pálpebras do morto, nas orelhas do morto, no pescoço do morto, nos cílios do morto, na boca do morto e consolar:
- Vá em paz.
Que hoje não temos nem paz para doer. Não há nem como completar uma ave Maria, um pai-nosso sem esquecer metade da reza. Rezamos rápido para lembrar a letra, e não adianta. Pensamos tão rápido que não desejamos pensar. Temos fé, mas não temos um lugar seguro para pousar as palavras.
O filho que fica, o filho órfão desses acidentes, vai passar frio o resto da vida. Frio porque não terá um pai ou uma mãe a insistir para colocar o casaco ao sair. Frio porque não terá um pai ou uma mãe para cobrir seus pés de madrugada. Frio porque o caixão paterno e materno estará sem vidro para a criança fazer desenhos com a respiração. Sem nenhuma vidraça para desenhar o caroço de um coração. O caroço. Porque nossa dor é caroço de uma polpa que não existe mais. De uma árvore que não existe mais. Só há caroço no lugar do coração. Um caroço apertado como um dente doendo, como um dedo preso eternamente numa porta que não abrirá. Frio de osso, frio porque o pequeno terá de completar a memória que falta com a imaginação.
Identifique a nossa dor, nossos mortos não estão mais naquele vôo. Estão em nossas casas. Venha entrar em seus quartos. Não tivemos coragem de informar às suas roupas que eles não vão voltar. Permanecem aguardando no cabide a força dos trilhos. Você precisa descobrir o que foi a vida de cada passageiro para entender a importância de sua morte. Tomar café da manhã com o passageiro morto, almoçar com o passageiro morto, jantar com o passageiro morto, para entender que ele não é uma exceção. Ele era toda a esperança de quem fica.
Quantos cadernos escolares ficarão sem assinatura dos pais? Quantas formaturas ficarão com assentos vazios? Quantos pequenos terão vergonha de escrever como foram suas férias para seus professores?Não deve supor o que é mexer na agenda de um pai ou de uma mãe e ver todos os compromissos do mês de agosto como se fossem acontecer. O que é revisar as fotografias para conversar em segredo, baixinho, entre a loucura e o medo. O que é deitar na cama deles para cheirar os travesseiros. Cheirar as fronhas com ganas de abraçar. O que é dizer “está tudo bem” para não desvalorizar a tristeza. O que é ouvir suas vozes ainda na secretária telefônica:
- Embarcaremos no vôo 3054, retornaremos em breve. Te amamos.
E escutar centenas de vezes a mensagem para descobrir alguma diferença sutil de um som a outro. Tentar achar alguma ameaça no tom, um pressentimento. E concluir que eles não anteviram nada de errado. Nada estranho.
Errado e estranho são os que brincam em transferir a responsabilidade. Não foi um acidente aéreo, foi um acidente ético. Uma catástrofe ética.
Eles só foram viajar, você entende? Eles só desejavam estar em casa, entende?
Identifique primeiro a nossa dor, respeite a nossa dor, os mortos estão reunidos na frente do rádio de nossa dor para esperar os seus nomes. Minha dor, eu entrego a Deus. Mas minha raiva, essa raiva de querer viver quem eu amo até depois de sua morte, está aqui, quente do meu hálito, à sua espera.

Um comentário:

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